Unhas brancas


Da casa para o hospital. Do hospital para casa. Assim eram seus dias: rotineiros e felizes. Como enfermeira, conseguiu tapar o buraco que havia em sua alma, por onde vazavam todos os sentimentos. Fechou! Lidando diretamente com a dor alheia, sua dor era mínima. O prazer era transcendental. Aos sábados a rotina era outra, mas também sagrada: o salão de beleza. Não que ela ligasse para a beleza, não era isso. Era questão de higiene. Suas unhas eram impecavelmente brancas. Brancas, curtas e limpas. O ritual era sagrado, pois não adiantava ser limpa, era preciso parecer limpa. E isso ela sabia como ninguém. O uniforme alvo, os cabelos alinhados e as unhas, ah, as unhas, limpas e brancas. Seu grande orgulho. Por meio delas, expressava aos pacientes toda a sua competência. Era para as mãos dela que eles olhavam na hora em que recebiam o medicamento, o curativo do machucado ou a injeção. Eram essas mãos que traziam o bálsamo para toda dor. E isso era a razão da vida dela, sua grande paixão e alegria.

Vivia contente dessa maneira, dedicando seus minutos e segundos ao  auxílio dos pacientes. Os finais de semana de plantão na emergência do pronto-socorro eram de imenso alívio. Assim, ela não precisava se preocupar em justificar para a família sua ausência nos penosos almoços, e nem era cobrada sobre um possível companheiro. Ela não era mais a filha, a prima ou a irmã. Era a enfermeira de mãos brancas e puras.

Um dia, entre um paciente e outro, esbarrou em um dos médicos mais poderosos do hospital. Um esbarrão de tirar tudo do lugar. Caíram papéis e medicamentos. E caiu também sua paz. Daquele momento em diante, o médico passou a assombrar seus pensamentos. Pensamentos antes tão límpidos, tornaram-se impuros. Para apaziguar, ela trabalhava mais e mais. Passou a se oferecer nos plantões. Passou também a ajudar uma senhora doente que morava sozinha. Ia de manhã e de noite para conferir se estava tudo bem. Para seu espanto, sempre estava.

Até que um dia, o médico a abordou. Queria explicações sobre  um relatório, mas ela não conseguiu entender. Tremia. Suava. Gelava.Esquentava. No meio da frase, ela o agarrou. Beijou com sofreguidão. Depois correu. Chegou em casa e tentou chorar. Que vergonha! Mas só conseguia rir, ou melhor, gargalhar. Seus desejos, há tanto reprimidos, resolveram aflorar. No dia seguinte foi ao salão de beleza e resolveu: pinte de vermelho. Já não era digna de unhas brancas. 

6 comentários:

  1. Amei! Tb quero pintar minhas unhas de vermelho e gargalhar até não poder mais

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  2. Oi. É a primeira vez que entro em seu blog. Também sou jornalista aqui em BH e achei interessante suas colocações sobre você, sobre as coisas. Parabéns.
    Também acho Clarice Lispector demais e você faz uma citação dela. Há encontrei devido a uma vaga no link zero( vagas para jornalistas) e tinha seu endereço do blog. Meu nome é Andréa Expósito, amo a profissão, estou procurando emprego, trabalhava de redatora em uma revista, amo esportes, principalmente pedalar, entendo bem do assunto e escrevo sobre tudo mais o que precisar, porque como diz a própria Clarice :
    "Sou sempre eu mesma, mas com certeza não serei a mesma pra SEMPRE!" Meu e-mail, caso queira contato comigo (kkkk e porque iria querer isso!!!) mas, se quiser, é akexposito@gmail.com
    Valeu pela atenção.
    Tenha um ótimo final de quinta- feira.

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